terça-feira, outubro 31, 2006

Alfabeto





Alfabeto

Estava eu no frio da morte a aproximar-se, quando pela derradeira vez me pus a fitar os seres, profundamente.

Ante o contacto mortal deste olhar de gelo, tudo o que não era essencial desapareceu. Entretanto eu ia-os perscrutando, querendo reter deles algo que nem o Morto pusesse largar. Eles adelgaçaram-se e acabaram por ficar reduzidos a uma espécie de alfabeto, mas um alfabeto capaz de servir no outro mundo, em qualquer mundo.

Aliviei-me assim do medo de me subtraírem o universo inteiro onde eu tinha vivido. Fortalecido com tal presa, contemplava-o invencido, e regressando o sangue, com a satisfação, às minhas arteríolas e veias, lentamente voltei a subir a vertente aberta da existência.

Henri Michaux, O retiro pelo risco Lisboa Fenda, pp. 34-35

segunda-feira, outubro 09, 2006

A um Deus desconhecido

A um Deus desconhecido


"O vento sussurrou um momento na relva e depois cresceu, trazendo consigo intensos odores a erva e a terra molhada, e a grande árvore agitou-se vivamente sob o vento. Joseph ergueu a cabeça e olhou para os seus enrugados ramos. Os olhos iluminaram-se-lhe em reconhecimento e desejou as boas vindas ao ser forte e simples que era seu pai, que pairara, com a sua juventude, como uma nuvem de paz, penetrando na árvore.

Ergueu a mão numa saudação. Disse baixinho: "Estou contente por ter vindo. Não me tinha apercebido até agora das saudades que sentia de si". A árvore mexeu-se ligeiramente. "Como vê é uma boa terra", continuou Joseph em voz baixa. "Vai gostar de cá estar". Abanou a cabeça para sacudir um resto de tontura, riu-se, em parte pelos seus pensamentos felizes, e em parte maravilhado com o seu súbito sentimento de irmandade para com a árvore... Pôs-se em pé, encaminhou-se para a velha árvore e beijou-lhe a casca"

John Steinbeck

A um Deus desconhecido

in http://soprarpalavrasaovento.blogspot.com/2006/10/um-deus-desconhecido.html