domingo, novembro 30, 2008

A fenda aberta


"Oh não, um escritor não pode desejar ser "conhecido", reconhecido.


O imperceptível, característica comum da mais alta velocidade e da maior lentidão.

Perder o rosto, saltar ou furar o muro, limá-lo muito pacientemente, escrever não tem outro fim.

É o que Fitzgerald chamava verdadeira ruptura: a linha de fuga, não a viagem nos Mares do Sul, mas a aquisição de uma clandestinidade (mesmo se se deve devir animal, devir preto ou mulher).

Ser finalmente desconhecido, como muito pouca gente o é, é isso, trair.

É muito difícil deixar de ser conhecido, mesmo da porteira, ou no bairro, o cantor sem nome, o ritornelo.


[...] O herói dissipa-se literalmente, geograficamente. O belo texto de Fitzgerald, THE CRACK UP, diz:
"Eu sentia-me como os homens que via nos combois de subúrbio, em Great Neck, já lá vão quinze anos, homens que não estavam interessados em saber se o mundo ia afundar-se num caos, no dia seguinte, desde que a sua própria casa fosse poupada. Eu passava a ser como eles, coisa gorducha como as que sabem dizer:
- Lamento muito, mas negócios são negócios. Ou:
- Você devia ter pensado nisso, antes de os problemas surgirem. Ou:
- O assunto não me diz respeito."

[F. Scott Fitzgerald, A FENDA ABERTA, Hiena Editora, Lisboa, 1986.]


Há todo um sistema social que poderíamos chamar sistema muro branco - buraco negro.
Estamos todos pregados no muro das significações dominantes, estamos sempre enterrados no buraco da nossa subjectividade, o buraco negro do nosso Eu que nos é o mais caro de tudo.
Muro onde se inscrevem todas as determinações objectivas que nos fixam, nos encaixilham, nos identificam e nos fazem reconhecer; buraco onde nos alojamos, com a nossa consciência, os nossos sentimentos, as paixões, os nossos pequenos segredos demasiado conhecidos, o nosso desejo de os fazer conhecer.
Ainda que o rosto seja um produto deste sistema, é uma produção social: grande rosto de faces brancas, com o buraco negro dos olhos.
As nossas sociedades têm necessidade de produzir rosto.
Cristo inventou o rosto.



O problema de Miller (que já era o de Lawrence): como desfazer o rosto, libertanto em nós as escavadoras que traçam linhas de devir?


Como passar o muro, evitando ressaltar, para trás, ou ser esmagados?


Como sair do buraco negro, em vez de girar no fundo, que partículas fazer sair do buraco negro?




Como quebrar mesmo o nosso amor para se ser finalmente capaz de amar?


Como devir imperceptível?




"Je ne regarde plus dans les yeux de la femme que je tiens dans mes bras, mais je les traverse à la nage, tête, bras et jambes en entier, et je vois que derrière les orbitres de ces yeux s'étend un monde inexploré, monde de choses futures, et de ce monde toute logique est absente… L'œil, libéré du soi, ne révèle ni n'illumine plus, il court le long de la ligne d'horizon, voyageur éternel et privé d'informations… J'ai brisé le mur que crée la naissance, et le tracé de mon voyage est courbe et fermé, sans rupture… Mon corps entier doit devenir rayon perpétuel de lumière toujours plus grande… Je scelle donc mes oreilles, mes yeux, mes lèvres. Avant de redevenir tout à fait homme, il est probable que j'existerai en tant que parc…" [Henry Miller, TROPIQUE DU CAPRICORNE, éd. du Chêne, p. 177.] "


Passagem de DIALOGUES (de Gilles Deleuze e Claire Parnet, Flammarion, Paris, 1977, pp.56-58).

Tradução de Edmundo Cordeiro

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